domingo, 24 de julho de 2016

A estranha ascensão de Marcola

O criminoso derrubou antigos aliados e se tornou o líder máximo do PCC graças a uma informação que sua ex-mulher passou para a polícia. A história do autoproclamado Primeiro Comando da Capital (PCC) - facção que domina os presídios paulistas e ordena crimes nas ruas - já foi contada centenas de vezes em reportagens e livros. Uma informação valiosa sobre as sucessivas disputas internas da quadrilha, no entanto, até agora havia passado despercebida e estava condenada a empoeirar nos escaninhos da Justiça: foi Ana Maria Olivatto, ex-mulher e advogada de Marcos Willians Herbas Camacho - o poderoso "Marcola" -, quem forneceu o número do celular de César Augusto Roriz Silva, um dos fundadores do PCC, para a polícia grampear. Conhecido como "Cesinha", ele e outros importantes na hierarquia bandida tinham sido levados para cadeias fora de São Paulo. O ano era 2002. E o governo paulista acreditava que, com os líderes distantes, a facção morreria. Um engano. Espalhados pelo País, eles se associaram aos criminosos locais. Por telefone, continuaram comandando o PCC. Quando Ana resolveu "ajudar", a polícia sabia muito pouco sobre a estrutura da facção. A megarrebelião que sacudiu 29 presídios no Estado, primeira demonstração pública de força do PCC, havia ocorrido no ano anterior. Desde então, uma porção de centrais telefônicas tinha sido descoberta e dezenas de bandidos ligados ao grupo jogados atrás das grades. Mas os investigadores ainda não haviam fechado o quebra-cabeça. Ao monitorar as conversas de Cesinha, as intrincadas relações entre os marginais e a cadeia de comando se tornaram claras. A fundamental contribuição da ex-mulher de Marcola foi revelada pelo delegado Ruy Ferraz Fontes durante uma audiencia na 12ª Vara Criminal de São Paulo. O depoimento consta do processo em que Marcola e alguns de seus companheiros respondem por formação de quadrilha. Cesinha foi grampeado quando estava preso em Bangu, no Rio de Janeiro. Dividia a cela com um detento de apelido "Chapolim", então braço direito do traficante Fernandinho Beira-Mar.
Foi ali que a associação entre o PCC e o Comando Vermelho vingou. Se de um lado Cesinha ganhou por ter firmado nova parceria no submundo, do outro caiu em desgraça porque virou um dos principais alvos da polícia.
Mas por que Ana o entregou? Primeiro ela se justificou dizendo que Cesinha a assediava, depois que fizera aquilo a pedido de Marcola. Interceptações telefônicas mostram que, naqueles tempos, Marcola andava ligando para o grupo de Fernandinho Beira-Mar para pedir, dinheiro emprestado. Estava com os bolsos vazios. Marcola teria traído o chefe Cesinha para lhe tomar o posto e se reerguer financeiramente? Qual das duas versões de Ana é a verdadeira?
A única pessoa capaz de dar essas respostas talvez seja o próprio Marcola. Ana foi abatida a tiros em outubro de 2002, na porta de sua casa, na região metropolitana de São Paulo. De acordo com a polícia, morreu por ordem de Aurinete Félix da Silva, mulher de Cesinha. A motivação do crime permanece obscura. O único fundador do PCC ainda vivo - José Marcio Felício, o "Geleião" - conta que Cesinha desconfiava que Ana estivesse passando informações da quadrilha para a Secretaria da Administração Penitenciária e mandou Aurinete encomendar o assassinato. Cesinha teria desistido da ideia, mas Aurinete não suspendeu a ordem porque Ana teria ameaçado contar a Cesinha que ela tinha um amante. Cesinha controlava a mulher com punhos de ferro. Ao menor deslize, a espancava.
O PCC vivia dias tensos. Cesinha e Geleião eram os principais líderes da facção, estavam isolados e só podiam contar com as mulheres para ditar as regras aos subordinados. Aurinete e Petronilha, fiel companheira de Geleião, criaram uma espécie de poder feminino e começaram a disputar o posto de primeira-dama.
As ordens de uma eram desautorizadas pela outra. Ana tentava se manter afastada dessa rivalidade. Já estava separada de Marcola, mas seguia aparando os problemas do ex-marido como advogada e ainda se dizia apaixonada. Quando foi assassinada, ela se preparava para um encontro com Geleião e Cesinha em que contaria as façanhas das patroas.   Com o assassinato de Ana, o PCC rachou. Cesinha foi expulso pelo envolvimento no homicídio e Geleião por tentar livrar Petronilha da prisão e diminuir a própria pena delatando nomes, estrutura e ações do grupo. Foram jurados de morte. Cesinha acabou executado, mas teria sido vítima de um suposto aliado. A dupla derrocada alçou Marcola ao posto mais alto da organização criminosa. Publicamente, no entanto, ele afirma não pertencer ao PCC. "Marcola é de uma periculosidade poucas vezes vista", diz o promotor de Justiça Carlos Talarico. "Com ele na liderança, em pouquíssimo tempo o PCC se tornou uma quadrilha muito maior e mais perigosa." Aos poucos, a facção foi achatando a estrutura piramidal e se dividindo em células.  De acordo com o Ministério Público, Marcola ainda é o número 1 e Júlio César Guedes de Moraes, o "Julinho Carambola", é o seu homem de confiança. Outros bandidos, cerca de dez, formam uma espécie de "conselho de administração". Grandes decisões, como assassinatos e ataques, tem de ser tomadas por esse conselho. Ações cotidianas da criminalidade, não.
Embora o PCC tenha nascido como um sindicato, com a intenção de defender os direitos dos detentos, a gestão de Marcola mudou o rumo da facção. Atualmente, o objetivo primordial do grupo é ganhar dinheiro. Estima-se que, entre 2005 e 2008, o faturamento do PCC tenha quadruplicado. No ano passado, a arrecadação mensal chegou a R$ 5 milhões. A facção domina o tráfico de entorpecentes nas cadeias paulistas. Nas ruas, quem quer vender drogas tem de comprá-las do PCC ou pagar um "aluguel" para continuar dono da boca. Os bandidos batizados pelos líderes e os simpatizantes costumam pagar mensalidades. Outros organizam rifas de bens valiosos, como casas e automóveis, para arrecadar dinheiro. Se o PCC fosse uma empresa, certamente estaria nessas listas de companhias de sucesso. Marcola tem se mostrado um empreendedor. Pena que tenha investido no crime.  Quem conhece Marcola afirma que ele não age como chefe. Não precisa. Marcola não é um ditador. Costuma ouvir opiniões alheias e raramente perde a compostura. Quando fala, tem o poder de convencer os companheiros. É eficiente na arte da persuasão, um verdadeiro líder. E faz o tipo intelectual
- carrega a fama de ter lido cerca de três mil livros. Durante um depoimento, em junho de 2006, os integrantes da CPI do Tráfico de Armas se interessaram em investigar as preferências de Marcola
. - Seu preferido é qual?, questionou o então deputado Neucimar Fraga.
- "Assim falou Zaratustra".
- Assim falou...
- Zaratustra.
- Nietzsche?, interveio o deputado Paulo Pimenta.
- Nietzsche.
Além do alemão Friedrich Nietzsche, obras dos pensadores franceses Voltaire e Victor Hugo e do escritor russo Fiodor Dostoievski, cuja temporada de quatro anos na prisão inspirou o clássico "Recordações da Casa dos Mortos", fazem parte do repertório de Marcola. Um feito e tanto para um órfão de pai e mãe, que abandonou a escola na quarta série, viveu na rua e se tornou criminoso nos primeiros anos da adolescência. O gosto de Marcola pela leitura emergiu depois de extensas e repetidas consultas ao Código Penal. No início do relacionamento, Marcola pedia para a primeira mulher, a advogada Ana, levar livros de direito para que ele se distraísse na cadeia. Marcola está condenado a 40 anos de prisão por roubo. Na próxima semana, pela primeira vez, deve ser julgado por homicídio. Ele é acusado de ter mandado matar Antonio José Machado Dias, juiz-corregedor de Presidente Prudente, no oeste paulista, em 2003.
O magistrado teria sido escolhido por ser rígido demais com os presos e como um símbolo para escancarar o poder da facção, já que os homens fortes do PCC estavam sob a sua jurisdição. Marcola nega ter participado do crime. Diz que a ordem partiu de José Eduardo Moura da Silva, o "Bandejão", um ex-aliado assassinado na cadeia dois meses depois da execução de Machado Dias. O promotor Carlos Talarico, que trabalha no caso, garante ter uma coleção de provas contra Marcola. "Ele vai tomar um toco, 30 anos", diz Talarico. "Essa será a primeira condenação de Marcola como líder do PCC. E representará o reconhecimento do Estado de que ele está à frente da facção."
Os problemas de Marcola com a Justiça não devem terminar por ai. Ele responde a outros cinco processos por homicídio - alguns cometidos durante os ataques em São Paulo, em 2006 - e crimes como sequestro e formação de quadrilha.
Quatro criminosos ligados ao PCC já foram condenados pela morte de Machado Dias. Julinho Carambola, o principal aliado do número 1, pegou 29 anos de prisão no mês passado. Se Marcola for considerado culpado por esse assassinato, como líder do PCC, a tendência é de que também seja condenado nos outros casos em que é acusado de comandar a facção. A perspectiva de permanecer encarcerado, no mínimo, durante as próximas duas décadas pode enfurecê-lo. Por enquanto, Marcola tem mantido a costumeira discrição. Continua confinado numa penitenciária em Presidente Venceslau, no interior do Estado, lendo e  assistindo tv. Na cela número 107.


"São pessoas muito articuladas, muito inteligentes." 

Para o professor, "Marcola tem uma visão muito clara do que está acontecendo". 

O psicólogo ressalva que não está elogiando criminosos, mas fazendo uma constatação objetiva. 

Alvino não sabe o que Marcola, que abandonou a escola na 4ª série, tem lido, mas está seguro de que ele se preparou intelectualmente nesses anos de prisão. A carreira de pequenos assaltos dos anos 80 foi interrompida por uma passagem pela extinta Casa de Detenção, onde Marcola se casou em 1990 com a advogada Ana Maria Olivatto, morta por rivais em 2002. De lá, fugiu em 1997, foi capturado e escapou de novo, em 1998. 

Saiu como grande assaltante, tendo roubado R$ 7 milhões da transportadora de valores Transpev. Gozou de um breve período de liberdade e luxo, andando em carros importados e trajando roupas de grife, o que lhe valeu o apelido Playboy. Até cair em julho de 1999, quando veio visitar o irmão Alejandro, também bandido. E não saiu mais da prisão, apesar de tentativas de resgate frustradas, promovidas pelo PCC, que ele passou a liderar no fim de 2002, depois de um racha entre os fundadores. Suas penas, que somam 39 anos, superam sua idade: Marcola nasceu há 37 ou 38 anos em Osasco, filho de pai boliviano e mãe brasileira. 

Numa passagem da conversa com os estudiosos, Marcola, falando um português irrepreensível, esbanjou conhecimentos gerais. 

"Professor, gostaria que o senhor me desse exemplos de sistemas de outros países", pediu a Alvino. 

O psicólogo começou pela Espanha. 

Marcola o cortou: 

"Não, não, não. A Espanha, deixa de lado, porque lá tem o ETA (grupo terrorista basco), tem o terrorismo, então o sistema prisional de lá está um pouco contaminado por isso. Dê outro exemplo." 

Alvino mencionou os Estados Unidos e foi interrompido outra vez. "Não, não, não. Os Estados Unidos têm todo aquele sistema eletrônico ultra-avançado, que também não quer dizer que deixe de ser desumano. E não se aplica ao nosso caso. Outro exemplo, professor." 

Autoconfiante, Marcola chegou a dar uma lição de moral no psicólogo de 63 anos. Alvino lhe contou que ficara desapontado com os presos de Mirandópolis, que tentaram uma operação de resgate pouco depois de começar um trabalho com eles. 

"É a lei da vida, professor", corrigiu Marcola. 

"Se o senhor acredita nos seus propósitos, tem de continuar sua caminhada. Não pode se desapontar tão facilmente." 

E emendou, com sinceridade desconcertante: 

"O senhor acha que, se de repente caírem as muralhas deste presídio, eu vou continuar aqui conversando com o senhor, feito um trouxa? Eu vou fugir.""Não posso me deixar levar pelo ódio. Se não, onde iríamos parar?" 

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